sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Caindo por terra

Durante séculos ela acompanhou a destruição de seus componentes: florestas foram derrubadas, ar e rios foram poluídos e inúmeras espécies de vida entraram em extinção. Em silêncio, ela observou o homem fabricar máquinas e tornar-se o detentor do poder, aniquilando tudo o que considerasse obstáculo para seu desenvolvimento. Ela tinha esperanças de que o ser humano, única espécie dotada de racionalidade, tomasse consciência do que estava fazendo e parasse com essa atitude predadora. Mas, pelo contrário, ele acelerou o ritmo de destruição sem prever as conseqüências, frustrando todas as expectativas dela.

Então, como fazer com que o ser humano percebesse o seu erro e evitasse o pior? Ela não encontrou outra forma, a não ser reagir. Terremotos devastadores, tsunamis catastróficos, temporais tenebrosos, deslizamentos de terra fatais, queimadas sem controle nas florestas, calor, calor, calor insuportável. Deu certo. O homem despertou de seu sono secular e só então compreendeu que a vida dela sempre esteve e continua em suas mãos. Mas, como se o alarme do despertador houvesse sido ignorado pela manhã, quando ele acordou já era tarde. Abriu os olhos e viu no termômetro que a temperatura estava maior do que o normal. Levantou-se da cama, ligou a TV no noticiário e descobriu que 150 espécies são extintas a cada dia, a camada de ozônio está em processo de destruição e não há meio de prever onde isso vai parar. Mensagem decifrada: ela está em fúria. E não há como fazê-la voltar ao que era antes. Mas ainda há um modo de tentar acalmá-la, antes que seja tarde. Ela, a natureza. Ela, a Terra.

Vingativa? Talvez. Mas a verdade é que o homem caiu em sua própria armadilha. Tornou o mundo um ambiente hostil para ele mesmo viver. Fez de tudo para aniquilar outras espécies e, regido pela lei da ação e reação, acabou por aniquilar a sua.

Não ouviu os conselhos. “Pare de desmatar!”, diziam uns. “Pare de matar!”, diziam outros. “Não polua tanto!”, reclamavam muitos. Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Então, ele continuou vivendo, enquanto tudo ao seu redor ia morrendo. Até que um dia começou a sentir os efeitos na própria pele. Assustou-se muito e começou a correr. Mas demorou pra sair da linha de largada e suava demais por causa do Sol, que estava mais intenso do que o normal. Correu mais, e chegou a uma local onde estavam reunidos representantes de diversos países em uma conferência sobre o clima. Discutiram tudo, menos o que deveriam. E saíram de lá na mesma.

Agora, desesperado, o homem tenta reverter a situação, tendo consciência de que pode apenas amenizá-la. Arrependido, abaixa a cabeça e nota que há um buraco em seu sapato: finalmente descobriu que deu um tiro no próprio pé. E a Terra está quase caindo por terra.

"A natureza é a única coisa para a qual não há substituto." (Anne Frank)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Perigo exótico

Tenho uma queda por coisas exóticas. Tudo aquilo que é diferente e (na maioria das vezes) estranho me chama a atenção. Há pouco tempo, logo que voltei a trabalhar, fui em busca de um lugar legal (e barato) pra almoçar. Encontrei um restaurante bacana, perto do serviço. Logo que entrei no local, me chamou a atenção uma lousa na parede, na qual havia uma variedade imeeensa de sucos pra escolher! Uns sabores absurdos, que nunca tinha ouvido falar. Me empolguei.

Comecei a almoçar lá e a pedir todos aqueles sucos bizarros pra experimentar, cada dia era um diferente. O balconista me olhava estranho quando eu pedia: "Me vê um suco de umbu!" - e logo em seguida o cara perguntava se algum dos funcionários já havia tomado aquele suco. Ninguém. Com certeza devo ter sido a primeira louca a tomar aquilo, lá no restaurante. Como disse o balconista depois que pedi o suco, "vai por sua conta e risco". E até que gostei.

Continuei a pedir outros, mais exóticos ainda, outros nem tanto. Até que cheguei no de pitanga. Não muito exótico, pelo menos eu conhecia a fruta. Mas, logo que virei o primeiro gole, me arrependi de ter pedido aquilo. O gosto era horrííível, azedo ao extremo e eu fui pedir açúcar pro garçom. Levei o açucareiro comigo pra mesa e dá-lhe açúcar no suco! Desilusão, o gosto continuava péssimo e só piorou com o açúcar. Desisti de tomar. Larguei o suco na mesa e fui embora. No dia seguinte, a garçonete do restaurante me perguntou, ironicamente: “E aí, vai um suco de pitanga hoje?”. Virei motivo de piada.

A partir daí, sosseguei o facho e voltei a tomar sucos "normais". Abacaxi, limão, uva, essas coisas. Percebi que o exótico torna-se uma grande armadilha quando você não o conhece: te atrai pela aparência, por ser novidade e só depois mostra sua característica marcante (seja ela boa ou ruim). Quando ruim, você sai no prejuízo de alguma forma: gasta dinheiro à toa, se arrepende, passa vergonha... Porque o exótico não permite meio-termo: ou você gosta muito dele, ou odeia. Sem falar que é muito mais difícil de encontrar e há poucos exemplares disponíveis. Enfim.

Apesar do suco, continuo gostando de coisas exóticas. São imperfeitas, marcantes e agradam a poucos. Porém, é sempre bom lembrar que existem outras opções no cardápio.

(na foto: o intragável suco de pitanga)

domingo, 3 de janeiro de 2010

O vestido

Era noite de festa. O vestido que ela usava era azul-escuro como o início da noite, e muito mais profundo que o azul-claro dos olhos do homem que dançava despreocupado em outro canto do salão. Cheio de camadas e pesado. O vestido, não o homem. E chegava a ser um problema, porque ninguém, naquele salão, estava com um vestido daquele estilo. Ninguém. Todos usavam roupas mais leves e confortáveis, enquanto ela se sentia presa em sua armadura azul, da qual não podia sair. Chamava demais a atenção dos convidados, e todos a olhavam e perguntavam: “você vai dançar a valsa?” Sim, ela pensou. Mas não haveria valsa, e isso ela descobriu só depois que entrou no salão. Levou um choque. Todos dançavam outra música, o que aquele vestido imenso tornaria difícil. Talvez ela mesma não quisesse dançar a mesma música que os outros, cansou-se disso.

Então sentou para esperar o homem dos olhos azuis, que não veio. Apareceu outro, um desconhecido que sentou ao seu lado e a convidou para dançar um estilo de música diferente. Mas ela fingiu não ouvir. Estava preocupada demais em não se tornar o foco dos olhares, o que já havia acontecido. E tudo por estar usando aquele vestido azul. Aquele com os detalhes em prata, que ela escolheu cuidadosamente na loja pra dançar a valsa. Que valsa? A que ela havia dançado tantas vezes em seus sonhos, de certo. Mas aquilo que ela vivia agora era um pesadelo. Sentia-se deslocada, no lugar certo com o traje errado. E tudo o que queria era apenas que alguém dançasse a mesma música que ela.
 
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