domingo, 15 de dezembro de 2013

Um alento

Vejo as pessoas lááá embaixo, tão distantes e pequenas. Formigas urbanas caminhando em filas, voltando do trabalho que realizam automaticamente sem questionar. O amontoado de prédios ao longe mostra que não há mais espaço pra respirar. O horizonte também é delimitado pelos contornos da serra, sinuosos como se tivessem sido desenhados pela mão de uma criança. Congestionado, o trânsito contrasta com a livre passagem das nuvens no céu. Mas há dias em que ambos trabalham juntos, carregados, nuvens de chuva produzindo um mar de carros.

A fumaça escura aparece de repente, deixando turva a visão da realidade que ficou por trás. Há fogo em algum lugar e o cinza da fumaça se mistura aos prédios de concreto, confundindo-se com a poluição.

A lona de circo ao longe deixa a sensação de que nem tudo é ferro e fogo na cidade. Mas onde estão os palhaços? 

Há vida no trator que parece dançar ao abaixar e levantar suas pás, ao som de motores frenéticos e do trem. Mas quem dança de verdade são as sacolas plásticas, ao sabor do vento.

Até no caos da vida urbana encontra-se poesia cotidiana, um alento.





quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Tanto amor em um tico

Sinto falta dele correndo pela casa, brincando com o papel higiênico debaixo da porta, com a baratinha de plástico. Pulando nas minhas costas de surpresa e ronronando quando eu chegava do trabalho. Sinto falta de ficar observando aquele sono leve, cheio de sonhos felinos e encanto. 

Ainda posso ouvir o ruído das patinhas no silêncio da madrugada, o andar macio como que se pisando em nuvens. O miado de criança e o barulho da placa de isopor sendo arranhada. Não há nada que pague nem apague da memória aquela carinha tomando sol e cheirando o vento. Nem a maneira com que brincava com os fios do fone de ouvido e do meu cabelo. À noite, à luz do aquecedor, eu me derretia com o olhar amoroso brilhando no escuro. 

Lembro bem de quando ele chegou, numa quarta-feira chuvosa do dia 11 de dezembro (exatamente como hoje. A vida e suas reincidências), na caixinha de papelão - aprendendo com certa dificuldade a andar sobre o tapete macio. Éramos duas crianças e crescemos juntos, na mesma proporção que o amor. Quando acabavam as aulas, eu espalhava pelo chão todas as provas e folhas de matérias acumuladas durante o ano e ele corria e se jogava comigo em cima dos papéis, na maior farra.

Da vida difícil que levava na rua, cheia de fome e doença, bebendo água da chuva e revirando o lixo, ele ganhou uma família enorme e um espaço maior ainda no meu coração. 

Como não amar um ser que tem medo de bolha de sabão? 

Quase 17 anos se passaram e em maio desse ano ele partiu, deixando uma saudade do tamanho do universo. Como é que uma criatura tão pequena pode deixar um vazio tão grande? Acho injusto que animais domésticos como cães e gatos vivam menos, mas acredito que esse pouco tempo de vida seja suficiente para que consigam  assimilar o amor, enquanto nós, humanos, levamos o dobro ou o triplo de tempo para isso. 

Tico querido, você me deixou um legado de amor que muitas pessoas não conseguem transmitir.  E é difícil voltar a encarar o mundo sabendo que não encontrarei em nenhum outro lugar a pureza e bondade que existiam em você. Seja em vida, sonho ou pensamento, te amo.



E como diria Caetano, 

"Cada sonho teu me abraça ao acordar
Como um anjo lindo
Mais leve que o ar, tão doce de olhar
Que nem um adeus pode apagar"

terça-feira, 26 de novembro de 2013

De passagem

Todas as mesas enfileiradas, repletas de papéis, revistas e bichinhos coloridos em cima dos monitores de computador. Tudo tão desorganizado e espalhado, mas demonstrando o estilo das pessoas que ocupavam cada uma das mesas. 

A sala estava clara, mas Ana, sentada à beirada de uma das mesas, só via névoas. Ali não era, definitivamente, o seu lugar. Só estava de passagem, como nuvem, como vento. Vendo tudo e não se prendendo a nada. Apenas observando e cumprindo obrigações.

Em cima do monitor, o pequeno vaso de flores murchas que um dia foram roxas completava a falta de vida dos sinistros manequins abandonados em frente à janela, uma vitrine onde não seriam vistos por ninguém. Posicionados cara a cara em pose sensual, deixavam eminente uma cena de beijo que nunca se realizaria. O tempo triste lá fora denotava que, por mais que fosse verão, o sol não estava presente, o que deixava a sala,  as conversas e as pessoas muito mais frias do que já eram. 

Os olhos de Ana não saíam do calendário, do relógio, dessas coisas que medem o tempo.

O tempo, sempre de passagem. Assim como ela.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Faltando peças

Sempre gostei de montar aqueles quebra-cabeças gigantes, de mil peças. Não é fácil e nem rápido montá-los, a não ser que você já conheça bem as peças e onde elas se encaixam. Com o passar dos anos, fui pegando o jeito, acertando o lugar de algumas peças e errando outras. Como na vida. Com a diferença de que nos quebra-cabeças eu sempre perdi algumas peças, enquanto na vida ainda não achei outras, o que denota incompletude do mesmo jeito.   

Em alguns setores, como o afetivo, já me encontrei, mas há outros em que ainda faltam as peças. Algumas até se encaixam, mas ainda não têm as arestas no mesmo formato do espaço a ser preenchido. É como tentar vestir uma roupa apertada: você sabe que não serve e acaba se machucando ao tentar ajustá-la em seu corpo. É por isso que existem os provadores. Vestiu e não serviu? Pega outro tamanho! O problema é que na vida as araras de roupas não estão fáceis e à disposição para escolher sem pressa e a tendência é levar algumas saias justas.

Tô vestindo algumas dessas no momento, até achar as que me sirvam.

sábado, 12 de janeiro de 2013

O tal do timing


- E por que não agora?

(...)

- Eu sinto que o nosso momento passou, só isso.

(...)

- Meu timing não é muito bom, né?

Não. E justamente por este motivo é que a relação entre Dexter e Emma, casal protagonista do livro Um Dia, de David Nicholls, é tão conturbada. Eles se gostam e sabem disso, mas não estão juntos porque não têm o mesmo timing. Têm um sentimento em comum que é despertado em momentos diferentes. Vivem a chance e o momento de ficar juntos e não percebem, não aproveitam.

Deixar passar o instante certo pode ser erro fatal. Se demorar um minuto, talvez o perca. É como esperar o dia clarear para acender a luz ou tomar o sorvete depois que derreteu. A história por trás do “você demorou tanto que agora eu nem quero mais!” e daquele momento em que a gente se pega, após uma discussão, pensando “aai, eu deveria ter dito isso! Por que não falei?”. Porque perdeu o timing da coisa. Perdeu, playboy.

Quem dera ser possível ajustar o dito-cujo como um ponteiro de relógio e sem horário de verão para confundir. Mas o timing é tão abstrato quanto um quadro de Kandinsky. É questão de percepção, mesmo. De pegar no ar, antes que se vá.

Pensando por esse lado, seria bom se tivéssemos a vida de Bill Murray no filme Feitiço do Tempo: acordar e o dia ser exatamente igual ao anterior, com os mesmo acontecimentos se repetindo nos mínimos detalhes. Chega uma hora em que, de tanto vivenciar os mesmos momentos, ele sabe a hora certa de agir e a coisa certa a dizer.

Deixar passar o momento é como perder o ônibus, só que pior: não dá pra ficar parado no mesmo ponto e é bem capaz que não passe outro. Pelo menos, não para o mesmo destino.

(texto meu publicado na edição 31 da Revista Offline)
 
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